quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Queda de Árvore na Catedral ou Mortes Evitáveis?



A parte interna do galho que caiu aparece oca. Segundo especialistas colaboradores do CEA, tal dano, que é viável de ser verificado tecnicamente, pode ter sido causado por um inseto, como a broca, levando a queda. Foto: Centro de Estudos Ambientais (CEA).

 

A perda de toda e qualquer vida é indignante, ainda mais quando se dá antes do tempo naturalmente esperado e com chance de ser evitada.

É tecnicamente possível monitorar e prevenir a queda de árvores, evitando riscos à incolumidade humana, como o caso da timbuava na Praça José Bonifácio (Catedral), em Pelotas/RS e, ato subsequente, a morte da própria árvore, um típico arvorecidio.

Tais situações podem ser evitáveis, quando se conta com uma politica de cuidado da arborização urbana. Uma incontestável necessidade para Pelotas e suas ruas sem verde, além de ser uma determinação da lei ambiental.

São vários os estudos científicos que comprovam o valor fundamental da arborização urbana (e aqui, no Pampa litorâneo, dos campos e dos banhados) para a qualidade de vida nas e das cidades, e fora delas também.

É impossível deixar de considerar o papel ecológico insubstituível que o conjunto de árvores pode proporcionar para vida como habitat e alimentos para diversos animais, controle biológico, polinização, a garantia da qualidade e continuidade dos ciclos naturais essenciais (como o ciclo da água), além de proporcionar economia de energia, mitigação da poluição (o número de mortes decorrentes da poluição do ar aumentaram 14% em dez anos e as internações por problemas respiratórios, em 2018, custaram R$ 1,3 bilhão ao SUS, conforme o estudo Saúde Brasil 2018) e das mudanças climáticas, colaborar na drenagem urbana, na regulação do microclima, recreação e cultura. As árvores ajudam a combater a depressão, a fadiga mental e o estresse, ou seja, promovem saúde para os humanos e para a natureza em geral. Benefícios que podem gerar economia para outras áreas das politicas públicas, como o Sistema Único de Saúde (SUS).

Pelotas há décadas apresenta um enorme déficit de arborização urbana, tendo um índice em torno de 4m2/habitante (RAMB 2002), quando a referência ideal (não há consenso) é de 20m2/habitante.

Por isso e também, notadamente, pela força da luta ecológica, foram democraticamente debatidas no Conselho Municipal de Proteção Ambiental (COMPAM) e na Câmara de Vereadores, e posteriormente promulgadas leis municipais que oferecem uma base inequívoca e sólida para a politica de arborização urbana, apontando responsabilidades, compensações, penalidades e objetivos, dentre eles:

- prevenir danos e garantir a reparação da arborização;

- instituir e atualizar o Plano Municipal de Arborização Urbana, através da Secretaria de Qualidade Ambiental (SQA) em conjunto com o COMPAM;

- monitorar a cobertura vegetal;

- estimular a educação ambiental formal e não formal;

- promover a colaboração mútua entre o Poder Público e as organizações não governamentais;

- elaborar o cadastro da flora municipal;

- colaborar com a implantação da Agenda - 21 local;

A lei também declara que TODA A VEGETAÇÃO DE DOMÍNIO PÚBLICO É IMUNE AO CORTE, ou seja, a REGRA É NÃO CORTAR ÁRVORES que estão nos espaços públicos como praças e calçadas, justamente para manter um conjunto verde urbano, patrimônio público, que possa cumprir uma função ecológica, mesmo que no meio urbano, oposto do natural.

ISSO SIGNIFICA QUE AS ÁRVORES NÃO PODEM SOFRER MANEJO? OBVIAMENTE, NÃO. Podem e devem, mas não de forma aleatória ou conforme a vontade do munícipe ou mesmo do administrador/a publico, pois a lei assegura exceções expressas, permitindo PODAS E SUPRESSÕES SOMENTE NOS SEGUINTES CASOS:

I - quando estado fitossanitário da árvore justificar;

II – quando a árvore constitua, na via pública, obstáculo fisicamente incontornável ao acesso de veículos e não seja possível tecnicamente alternativa;

III - quando causar danos irreparáveis ao patrimônio público ou privado e não seja possível tecnicamente alternativa.

Um, dos tantos questionamentos, que surge diante desse caso de queda que levou a uma morte indignante de um munícipe e feriu outra é: em qual dessas possibilidades, e somente nessas seria possível, a SQA fundamentou a ordem de corte da timbuava da praça junto a catedral?

Na primeira possibilidade legal, não pode ter sido, pois a própria SQA anunciou que, após analise, foi constatado que a árvore estava em estado fitossanitário adequado, ou seja, não apresentava doença e nem estava apodrecida e, portanto, não oferecia riscos de queda iminente.

A segunda exceção, prevista em lei, “obstáculo fisicamente incontornável ao acesso de veículos” na via pública, também não pode ter servido de fundamentação legal, pois a árvore estava numa praça e não atingia o espaço das ruas laterais vizinhas.

E a última permissão legal também não se aplica, pois a árvore, inutilmente sacrificada, não estava causando danos irreparáveis ao patrimônio público ou privado.

Então, a decisão da SQA, além de contrariar uma analise técnica, já que não foi apresentado nenhum indicio fitossanitário que indicasse tal medida drástica, foi ilegal. Se trata de ato administrativo fora da razão técnica e legal, ao menos é um entendimento possível. Outra conclusão possível é que se trata de um tipo de “prestação de contas” à sociedade ou mesmo um tipo de vingança vã, motivação que não encontra, obviamente, amparo na lei e na inteligência e/ou racionalidade ambiental.

De qualquer forma, estamos diante de um arvorecidio, provocado pela SQA, justamente quem tem obrigação legal do contrário, qual seja, proteger a arborização urbana pública (pois assim esta protegendo concomitantemente a vida humana e não humana) e, dessa finalidade, não pode se desviar, sob pena de praticar ilicitudes, como recentemente decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF), em relação a postura do ministro (condenado) do meio ambiente e decisões do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) que, de forma semelhante, desprotegeu a vegetação de praias.

Independentemente de deduções permitidas e estimuladas pela conduta, no mínimo, contraditória da SQA, o fato é que Pelotas dispõe de leis que preveem formas econômica e tecnicamente factíveis capazes de evitar a queda de árvores, que não são necessariamente imprevisíveis e nem ato do além, já que é da natureza da árvore cair para que outras possam nascer. E a SQA deve cumprir a lei, uma vez que o administrador/a publico não tem vontade (sua “vontade” é o que a lei estabelece) e o papel do COMPAM, da Câmara de Vereadores, do Ministério Público (MP) e do Tribunal de Contas é exigir esse cumprimento legal.

O que Pelotas não dispõe é uma gestão pro-arborização urbana. Danos e quedas de árvores podem ser previstas e evitados. Para tanto, o governo municipal deve cumprir com sua obrigação legal de cuidar e manter a arborização urbana sadia, para atender suas funções ecológicas e sociais.

Evidentemente, para tanto, é necessária uma politica ambiental construída e praticada para tal fim, com reserva orçamentaria, democracia no COMPAM, diagnóstico, monitoramento e manejo constante, o que o grupo que esta no poder ha mais de 16 anos não fez e ainda desmanchou o que estava em início, como o próprio Plano de Arborização Urbana e a Agenda 21. O resultado esta ai: descuido e precarização da arborização urbana, atingindo diretamente as pessoas, que perdem a vida e a saúde e indiretamente toda a sociedade, que perde em qualidade urbana, em qualidade de vida.

O risco não esta na árvore em si, ou seja, nem toda árvore é uma ameaça. Ao contrário. As árvores, como dito, promovem benefícios às pessoas e as cidades. As árvores podem ser uma ameaça quando a gestão ambiental é omissa, ou seja, quando a prática ambiental é do descuido e não do cuidado.

Especialistas ligados ao CEA, que analisaram a situação, não descartaram que a queda tenha sido provocada por um desequilíbrio da copa ou um ataque por  broca. Nem recomendaram sua supressão. Uma poda drástica e posterior condução dos rebrotes seria uma alternativa técnica e legal à medida extrema de derrubada da árvore.

Dessa forma, ficam perguntas no ar e, por obrigação e em razão do direito ao acesso a informação ambiental, a SQA precisa responder para o COMPAM e para a sociedade em geral:

- quais medidas tomou para evitar a queda da árvore?

- quais medidas foram adotadas para reparar e compensar o corte?

- o que fez para construir o Plano Municipal de Arborização Urbana?

- quais ações de monitoramento da cobertura vegetal foram realizadas?

- quais ações de educação ambiental foram adotadas?

- como promoveu a colaboração entre o Poder Público e as organizações não governamentais?

- o que fez para elaborar o cadastro da flora municipal?

- que medidas adotou para reimplantar a Agenda - 21 local?

- Se árvore estava em estado sanitário adequado, porque ela caiu?

- Se árvore estava em estado sanitário adequado, porque ela foi cortada?

- Em qual das três possibilidades legais foi fundamentada a ordem de corte da árvore?

- Por que não foram aplicadas medidas técnicas viáveis e menos drásticas do que a supressão?

 

Se a SQA não aplicasse a racionalidade liberal do “deixe fazer”, muitas quedas poderiam ser identificadas e evitadas, assim como danos ao patrimônio e ameaças a incolumidade pública. Mas, quase tudo que tem relação com o interesse público, é desprezado por esse pensar/fazer neoliberal, ameaçando a vida nas suas mais variadas manifestações.

Por Antônio Soler

Advogado Ambientalista, Doutor em Educação Ambiental 

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